POR C.
S. Lewis
O que me protege definitivamente de todas essas reconstituições feitas
pelos críticos é o fato de que tenho visto todas as tentativas deles do outro
lado do prisma. Tenho observado os revisores reconstituírem a gênese de meus
próprios livros, exatamente dessa forma.
Há duas respostas para essa indagação. Em primeiro lugar, apesar de respeitar a erudição dos grandes críticos das Escrituras Sagradas, ainda não estou persuadido que o juízo deles deva ser igualmente respeitado. Em segundo lugar, consideremos com quantas avassaladoras vantagens iniciam os meros revisores. Eles procuram reconstituir a história de um livro escrito por alguém cuja língua pátria é a mesma que a deles; por alguém que é um contemporâneo, educado como eles o foram, que vivem mais ou menos na mesma atmosfera mental e espiritual. Contam com tudo quanto pode ajudá-los. A superioridade no terreno do julgamento e da diligência que se poderia atribuir aos críticos da Bíblia terá de ser sobre-humana, se tiver de contrabalançar o fato de que por toda parte precisam enfrentar costumes, linguagens, características étnicas, pano de fundo religioso, hábitos de composição e pressupostos básicos que nenhuma erudição jamais poderia capacitar qualquer pessoa viva a saber com tanta certeza, intimidade e instinto, como os meros revisores de obras contemporâneos são capazes de atuar. E pelas mesmas razões, lembremo-nos de que os críticos da Bíblia, sem importar quais reconstituições imaginaram, jamais poderão estar comprovadamente equivocados. Marcos já morreu. E quando encontrarem Pedro, haverá questões mais urgentes a serem debatidas.
A antiga ortodoxia tem sido solapada principalmente pela obra deletéria
de teólogos engajados na crítica do Novo Testamento. A autoridade de
especialistas naquela disciplina é a autoridade em deferência à qual somos
solicitados a desistir de um imenso acúmulo de crenças compartilhadas em comum
pela Igreja primitiva, pelos pais da Igreja, pela Idade Média, pela Reforma
Protestante, pelos pregadores do século 19. Quero explicar aqui o que me deixa
cético quanto a essa autoridade, ignorantemente cético, conforme muitos diriam
após um exame superficial da questão. Mas o ceticismo é o pai da ignorância. É
difícil alguém perseverar em um estudo detalhado quando tal estudioso não pode
confiar prima facie em seus mestres.
Em primeiro lugar, o que quer que esses homens possam ser como críticos
da Bíblia, desconfio deles como críticos. A mim parece que são fracos quanto a
um bom juízo literário, mostrando-se incapazes de perceber a própria qualidade
dos textos que examinam. Pode parecer isso uma estranha acusação contra
indivíduos que têm estudado esses livros a sua vida inteira. Mas talvez
precisamente aí resida a dificuldade deles. Um homem que passou toda a sua
juventude e idade adulta fazendo pesquisas minuciosas nos textos do Novo Testamento
e nos estudos de outros homens sobre estes textos, cuja experiência literária
sobre aqueles textos ressente-se de quaisquer padrões de comparação que só
podem desenvolver-se após uma ampla e profunda e genial experiência com a
literatura em geral, conforme penso, tende muito a perder de vista as questões
óbvias envolvidas. Se tal homem chega e diz que alguma coisa, em um dos
evangelhos, é lendária ou romântica, então quero saber quantas lendas e
romances ele já leu, o quanto está desenvolvido o seu gosto literário para
poder detectar lendas e romances, e não quantos anos ele já passou estudando
aquele evangelho. Porém, provavelmente seria melhor eu citar exemplos.
Em um comentário que atualmente já é bastante antigo, li que o quarto
evangelho é considerado por certa escola crítica como um “romance espiritual”,
como “um poema, e não uma história”, que deve ser aquilatado pelos mesmos
cânones que a parábola de Natã, o livro de Jonas, o Paraíso Perdido, ou, mais exatamente ainda, o Peregrino de John Bunyan. Depois que um crítico faz essa
declaração, por qual motivo daríamos atenção a qualquer coisa que ele ainda
possa dizer sobre qualquer livro do mundo? Notemos que este autor considerou o Peregrino, uma história que professa ser
um mero sonho e que exibe sua natureza alegórica da maneira mais explícita,
como o mais chegado paralelo do evangelho de João! Notemos também que tal autor
nem deu atenção ao fato de que Milton não escondeu estar escrevendo uma poesia
épica. Mas mesmo que deixemos de lado esses absurdos mais grosseiros e nos
apeguemos ao livro de Jonas, ainda assim a insensibilidade desse autor é crassa
– pois disse ele que Jonas é apenas um conto, sem quaisquer pretensões de
historicidade, um incidente grotesco e certamente não destituído de uma veia
humorística tipicamente judaica, embora, sem dúvida, distintivamente
edificante. Voltemo-nos, em seguida, para o evangelho de João. Leiamos os seus
diálogos: aquele entre Jesus e a mulher samaritana, à beira do poço, ou então
aquele outro, após a cura do cego de nascença. Examinemos em seguida os seus
quadros mentais: Jesus (se me é permitido usar o termo) a escrever na areia com
Seus próprios dedos; a inesquecível observação hvn dev nux (João 13.30), “E era
noite”. Sim, tenho lido poemas, romances, literatura acerca de visões, lendas e
mitos a vida toda. Sei com o que esse tipo de literatura se parece. Sei que em
todo esse tipo de literatura não há nada que chegue à altura do quarto
evangelho. Acerca do texto do quarto evangelho só são cabíveis dois pontos de
vista. Ou trata-se de uma reportagem – que se aproxima extraordinariamente dos
fatos ocorridos, conforme disse Boswell. Ou então, algum escritor desconhecido,
no século 2º d. C., sem quaisquer antecessores ou sucessores
conhecidos, de súbito antecipou a técnica inteira da narrativa moderna,
novelesca, realista. Se o evangelho de João é veraz, então deve ser alguma
narrativa dessa categoria. O leitor que não puder perceber isso, simplesmente
ainda não aprendeu a ler.
Na obra de Bultmann, Theology of
the New Testament (pág. 30), encontramos um outro exemplo do que estamos
ressaltando. Disse ele: “Observemos de que maneira não-assimilada a predição
sobre a parousia (ver Marcos 8.38)
segue-se à predição sobre a paixão (Marcos 8.31).” O que Bultmann pode ter
querido dizer? Não-assimilada? Bultmann acreditava que as predições acerca da parousia eram mais antigas que as
predições a respeito da paixão. Por conseguinte, ele queria acreditar – e sem
dúvida assim acreditava – que quando ocorriam as duas menções em uma mesma
passagem, é que alguma discrepância ou ‘não-assimilação’ seria perceptível
entre elas. Mas por certo ele impingiu isso sobre o texto sagrado com uma chocante
falta de percepção. Pedro acabara de confessar que Jesus era o Ungido. O
relâmpago de glória nem se apagara ainda quando começou aquela tenebrosa
predição – o Filho do homem haveria de sofrer e morrer. E, então, o tremendo
contraste foi reiterado. Pedro, embora tendo-se elevado por um momento, através
de sua confissão do messiado de Jesus, chegou a tropeçar: e Jesus o repreendeu
com aquelas terríveis palavras, “Arreda! Satanás.” E então, em meio à
momentânea ruína em que Pedro se transformou (o que sucedeu com certa
freqüência), a voz do Mestre, voltando-se para a multidão, generalizou a lição
moral. Todos os seguidores de Jesus precisam carregar a sua própria cruz. Esse
receio diante do sofrimento, essa autopreservação, não corresponde às
realidades da vida. Em seguida, de maneira melhor definida ainda, soou a
convocação ao martírio. Ninguém pode desviar-se do reto caminho. Se alguém
negar a Cristo aqui e agora, Cristo haverá de negá-lo na outra vida. Lógica,
emocional e imaginativamente, a seqüência mostra-se perfeita. Somente um
Bultmann poderia pensar de outra forma, com sua Crítica de Forma.
Finalmente, meditemos no que saiu da pena desse mesmo Bultmann: “A
personalidade de Jesus não tinha qualquer importância para a pregação de Paulo
ou de João... De fato, a tradição da igreja primitiva nem ao menos preservou
inconsistentemente um quadro descrito de Sua personalidade. Toda tentativa para
reconstruir esse quadro tem permanecido como um jogo de imaginação subjetiva”.
Portanto, na opinião da crítica destrutiva o Novo Testamento não nos
apresenta qualquer personalidade de nosso Senhor. Através de qual estranho
processo aquele erudito alemão entrou, a fim de tornar-se cego para aquilo que
todos os homens vêem, menos ele? Qual evidência existe de que ele reconheceria
uma personalidade, se tivesse de defrontar-se com ela? Pois o caso é de um
Bultmann contra mundum. Se existe
alguma coisa que os crentes sentem em comum, e até mesmo muitos incrédulos,
essa coisa é que, nos evangelhos, deparamo-nos com uma extraordinária
personalidade. Existem personagens que sabemos terem sido figuras históricas,
mas acerca das quais sentimos que não possuímos qualquer conhecimento pessoal –
conhecimento por meio da familiaridade. Poderíamos citar entre esses vultos
pessoas como Alexandre, Átila ou Guilherme de Orange. Existem outros vultos que
não reivindicam qualquer realidade histórica, a despeito do que nós os
conhecemos como conhecemos pessoas reais, como Papai Noel, Tio Sam ou
Super-Homem. Mas existem apenas três personagens que, dotadas da primeira sorte
de realidade, também possuidoras da segunda espécie de realidade. E certamente
todos sabem de quem se trata: o Sócrates de Platão, o Jesus dos evangelhos e o
Johnson de Boswell. Nossa familiaridade com eles exibe-se de diferentes
maneiras. Assim, quando nos pomos a ler os evangelhos apócrifos, surpreendemo-nos
constantemente a dizer acerca desta ou daquela declaração ou logion: “Não. Temos aqui uma boa
declaração. Mas não pertence a Jesus. Não era assim que Ele costumava falar”.
Tão poderosa é a fragrância da personalidade que mesmo quando Jesus
dizia coisas que – não fora o fato de Ele ser a própria encarnação da Deidade –
pareciam espantosamente arrogantes, contudo, nós – e muitos incrédulos, por
igual modo – aceitamos a Ele segundo a Sua própria avaliação. Para
exemplificar, quando Ele declarou: “... sou manso e humilde de coração...” Até
mesmo aquelas passagens do Novo Testamento que, superficialmente, e em
intenção, dizem respeito à natureza divina, obscurecendo a natureza humana,
levam-nos a enfrentar a personalidade de Jesus. Não tenho a certeza se essas
passagens fazem isso mais do que outras. “... o que temos visto com os nossos
próprios olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam... a nossa
comunhão é com o Pai e com seu Filho, Jesus Cristo...” (1João 1.1-3). Qual é a
vantagem que alguém poderia obter por tentar evitar ou dissipar esse
avassalador senso de contato pessoal com Jesus, quando esse alguém refere-se
“àquela significação que a igreja primitiva encontrava e que se sentia impelida
a atribuir ao Mestre”? Declarações assim esbofeteiam-me o rosto. Não devemos
pensar no que aqueles cristãos sentiram-se impelidos a fazer, mas podemos
comparar tais impressões com as impressões impessoais de um artigo escrito por
algum autor da escola da Alta Crítica, ou de um obituário, ou de alguma obra
como Life and Letters of Yeshua Bar-Yosef,
em três volumes, acompanhada por fotografias antigas.
Esse, pois, é o meu primeiro balido. Esses homens pedem-me que eu acredite
que eles podem ler entre as linhas dos textos antigos; mas todas as evidências
levam-me a notar a óbvia incapacidade deles de lerem (em qualquer sentido digno
de discussão) as próprias linhas. Eles afirmam poder ver coisinhas minúsculas,
mas não podem ver um elefante a dez metros de distância, em plena luz do dia.
Agora, o meu segundo balido. Toda teologia da categoria liberal
envolve, em algum ponto – e, por muitas vezes, do começo ao fim –, a
reivindicação que o real comportamento e o propósito dos ensinamentos de Cristo
quase imediatamente vieram a ser mal compreendidos e distorcidos por Seus
seguidores, e que somente os eruditos modernos puderam exumá-los ou
recuperá-los. Ora, muito antes que me interessasse pelas questões teológicas,
eu já havia encontrado esse tipo de teoria em outros lugares. A tradição de
Jowett ainda dominava os estudos sobre a filosofia antiga quando comecei a ler
as obras de Greats. Então, os leitores eram convidados a acreditar que o
sentido real dos escritos de Platão havia sido mal entendido por Aristóteles, e
loucamente travestido pelos filósofos neoplatônicos, e que tal sentido só foi
redescoberto pelos pensadores modernos. E uma vez refeito esse significado,
descobriu-se (mui afortunadamente) que Platão o tempo todo havia pensado como
um Hegel inglês, ou melhor, como T. H. Green. E, em meus estudos profissionais,
encontrei essa idéia pela terceira vez. A cada nova semana algum esperto
quartanista, a cada quinze dias algum embotado perito norte-americano, vem
descobrir, pela primeira vez na história do mundo qual o sentido real de alguma
peça de Shakespeare. Nessa terceira instância, entretanto, já sou uma pessoa
privilegiada. A revolução que tem havido na maneira de pensar e sentir,
ocorrida durante o curto período de minha vida, é tão grande que, mentalmente falando,
pertenço mais ao mundo de Shakespeare do que ao mundo desses intérpretes recentes.
Percebo-o, sinto-o nos meus próprios ossos, estou convicto, acima de qualquer
argumento, de que a maioria das interpretações desses modernos pensadores é
praticamente impossível. Tais interpretações envolvem uma maneira de considerar
as coisas que era desconhecida em 1914, e, mais ainda, no período jacobeano.
Isso confirma diariamente a minha suspeita quanto à abordagem dos críticos no
tocante aos escritos de Platão ou do Novo Testamento. Essa noção de que
qualquer homem ou escritor deveria ser opaco e imcompreensível para aqueles que
viviam na mesma época, na mesma cultura, que falavam o mesmo idioma, que
compartilhavam das mesmas habituais imagens mentais e pressupostos inconscientes,
e que, no entanto, torna-se perfeitamente claro e transparente para aqueles que
não dispõem de nenhuma dessas óbvias vantagens, em minha opinião, não passa de
um imenso absurdo. Nessa noção há uma improbabilidade a priori que não pode ser contrabalançada por quase qualquer
argumento e evidência.
Em terceiro lugar, descubro nesses teólogos o constante emprego do
princípio que diz que os milagres nunca ocorrem. Isso quer dizer que qualquer
declaração posta nos lábios de nosso Senhor, pelos textos antigos, se é que Ele
a fez realmente, constituiria uma predição sobre o futuro, mas só foi
registrada após a ocorrência daquilo que ela parecia predizer. Essa opinião
pode parecer sensata para aqueles que julgam saber que jamais ocorrem predições
inspiradas. Por semelhante modo, a rejeição de todas as passagens bíblicas que
narram milagres como trechos não-históricos, pode parecer uma rejeição sensata
para aqueles que pensam saber que os milagres, em geral, jamais ocorrem. Ora,
não é meu propósito discutir aqui se os milagres são possíveis ou não.
Tão-somente quero ressaltar aqui que essa é uma questão puramente filosófica.
Os eruditos, enquanto eruditos, não falam a esse respeito com maior autoridade
do que qualquer outra pessoa. O cânon que estipula, “se é miraculoso, não é
histórico”, é uma regra que os críticos impõem aos seus estudos dos textos
sagrados, e não um princípio que deduziram desses textos. E já que estamos
falando em autoridade, a autoridade conjunta de todos os críticos bíblicos do
mundo é aqui considerada como zero. Quanto a isso, os críticos falam apenas
como homens; homens obviamente influenciados pelo espírito da época em que
cresceram, espírito esse talvez insuficientemente crítico quanto às suas
próprias conclusões.
Mas o meu quarto balido – que também é o mais longo e mais vocífero –
ainda vem por aí.
Todo esse tipo de crítica tenta reconstruir a gênese dos textos
estudados. Essa reconstituição busca quais documentos desaparecidos cada autor
usou; quando e onde ele escreveu; com quais propósitos; sob quais influências –
a Sitz im Lebenz (situação vivencial)
inteira dos textos. E isso é efetuado com imensa erudição e com grande engenho
e arte. À primeira vista, esses esforços são muito convincentes. Chego a pensar
que eu mesmo poderia ser convencido por tais argumentos, não fora um certo
encantamento mágico que sempre trago comigo – uma certa erva fabulosa, de
propriedades mágicas – e que uso com sucesso contra tais engodos. Aqui, o
leitor precisa desculpar-me se estou falando de mim mesmo por alguns instantes.
Pois o valor daquilo que digo depende de ser ou não evidências colhidas em
primeira mão.
Enquanto um escritos não acompanha o processo, no caso de seus próprios
livros, ele dificilmente acredita que tão pouco de revisão ordinária é usada
pelos críticos. Eles não avaliam, nem elogiam, nem censuram o livro que estão
criticando. Quase tudo quanto fazem é utilizarem-se de histórias imaginárias
acerca do processo mediante o qual o escritos em pauta teria atuado. Os
próprios vocábulos que esses revisores usam, ao elogiar ou censurar a obra, com
freqüência dão a entender o que eles fazem. Eles elogiam uma passagem “espontânea”
e censuram outra passagem como “elaborada”. Em outras palavras, pensam ser
capazes de saber que o escritor escreveu uma dessas passagens currente calamo (“ao correr da pena”),
ao passo que a segunda, invita Minerva
(“contra a vontade de Minerva”), ou seja, sem destreza técnica e sem sabedoria.
Qual o pequeno ou nenhum valor dessas reconstituições, feitas pelos
críticos, aprendi desde cedo em minha carreira. Eu havia publicado um livro de
ensaios. Aquele foi um livro para o qual me preparei de todo o coração, que
tanto mexeu comigo e que escrevi com o mais agudo entusiasmo, acerca da
personalidade de William Morris. No entanto, logo na primeira crítica que li a
respeito, o revisor afirmava que era óbvio que eu tinha escrito sobre essa
personagem sem ter demonstrado o mínimo interesse por ela. Que o leitor não me
compreenda mal. Acredito agora que o tal crítico tinha razão ao pensar que o
ensaio sobre William Morris foi muito ruim; pelo menos todos concordaram com
ele. Mas aonde ele estava totalmente equivocado foi ao imaginar as causas que
teriam produzido tão embotado ensaio.
Bem, o fato é que isso me deixou com a pulga atrás da orelha. Desde
então, tenho vigiado, com alguma preocupação, histórias imaginárias similares,
tanto acerca de meus próprios livros como acerca de livros de meus amigos, cuja
história real eu saiba. Os revisores, tanto os amigáveis quanto os hostis,
pespegam sobre os autores essas invencionices, fazendo-o com grande
desenvoltura e confiança própria; dizem quais eventos públicos teriam tido
influência direta sobre a mente dos autores, quanto a isso ou quanto a aquilo,
quais outros autores tê-los-iam influenciado, quais teriam sido suas intenções
globais, qual tipo de audiência os autores estariam visando, e por que e quando
os autores fizeram tudo quanto fizeram.
Ora, antes de tudo preciso deixar registradas as minha impressões; e só
então, em distinção a isso, poderei asseverar o que sou capaz de dizer com
certeza. Minhas impressões são que, na totalidade de minha experiência, nenhuma
dessas tentativas de adivinhação dos críticos tem estado ao lado da razão, e
que tal método exibe um recorde de cem por cento de fracasso. Alguém poderia
esperar que, devido à mera chance, os críticos acertassem tão freqüentemente
quanto erram o alvo. Mas a minha nítida impressão é de que eles nunca acertam.
Não consigo lembrar de um único acerto deles. Porém, visto que não tenho feito
anotações cuidadosas a respeito, minhas meras impressões podem estar
equivocadas. O que penso que posso afirmar com toda a certeza é que,
usualmente, eles se equivocam...
Ora, sem dúvida esses fatos deveriam fazer-nos parar para refletir. A
reconstituição da história de um texto qualquer, quando esse texto é antigo,
pode parecer deveras convincente. Em tal caso, entretanto, quem queira provar o
contrário estará malhando em ferro frio, pois os resultados obtidos não poderão
ser cotejados com os fatos. A fim de averiguarmos quão fidedigno é esse método,
que mais poderíamos pedir senão que se examine uma instância, onde o mesmo
método foi usado em obras que podemos examinar, por serem recentes? Pois bem, é
precisamente isso que tenho feito. E, quando assim fazemos, então descobrimos
que os resultados são sempre ou quase sempre errados. Os “firmes resultados da
erudição moderna”, na sua tentativa de descobrir por quais motivos algum livro
antigo foi escrito, segundo podemos facilmente concluir, só são “firmes” porque
as pessoas que sabiam dos fatos já faleceram, e não podem desdizer o que os
críticos asseguram com tanta autoconfiança. Os gigantescos ensaios em meu
próprio campo, que procuraram reconstruir a história do livro Piers Plowman, ou o livro The Faerie Queene, provavelmente não
passam das mais puras tapeações.
Aventuro-me a comparar qualquer pretensioso que escreve uma crítica
literária em uma revista semanal com os grandes eruditos que consagraram suas
vidas inteiras ao estudo pormenorizado do Novo Testamento? Se aqueles primeiros
sempre se equivocam, segue-se daí que estes últimos não podem sair-se melhor em
seu trabalho?
Há duas respostas para essa indagação. Em primeiro lugar, apesar de respeitar a erudição dos grandes críticos das Escrituras Sagradas, ainda não estou persuadido que o juízo deles deva ser igualmente respeitado. Em segundo lugar, consideremos com quantas avassaladoras vantagens iniciam os meros revisores. Eles procuram reconstituir a história de um livro escrito por alguém cuja língua pátria é a mesma que a deles; por alguém que é um contemporâneo, educado como eles o foram, que vivem mais ou menos na mesma atmosfera mental e espiritual. Contam com tudo quanto pode ajudá-los. A superioridade no terreno do julgamento e da diligência que se poderia atribuir aos críticos da Bíblia terá de ser sobre-humana, se tiver de contrabalançar o fato de que por toda parte precisam enfrentar costumes, linguagens, características étnicas, pano de fundo religioso, hábitos de composição e pressupostos básicos que nenhuma erudição jamais poderia capacitar qualquer pessoa viva a saber com tanta certeza, intimidade e instinto, como os meros revisores de obras contemporâneos são capazes de atuar. E pelas mesmas razões, lembremo-nos de que os críticos da Bíblia, sem importar quais reconstituições imaginaram, jamais poderão estar comprovadamente equivocados. Marcos já morreu. E quando encontrarem Pedro, haverá questões mais urgentes a serem debatidas.
Naturalmente, o leitor poderá dizer que esses revisores de obras
contemporâneas são tolos, por tentarem adivinhar como algum livro, que eles não
escreveram, foi escrito por outrem. Eles supõem que alguém escreve uma
história, tal como eles mesmos tentariam escrever uma história; e o fato de
tentarem realizar essa façanha, explica por que eles nunca produziram qualquer
história e a publicaram. Mas, e os críticos da Bíblia apareceram sob melhor luz
quando confrontados com aqueles outros? O Dr. Bultmann nunca escreveu um evangelho.
As experiências de sua erudita, especializada e sem dúvida meritória vida
realmente deram-lhe a capacidade de ler as mentes de homens que morreram faz
muitos séculos, arrebatados como eles foram por aquilo que temos de considerar
como a experiência religiosa mais central e atordoadora de toda a história
humana? Não é uma incivilidade dizer – conforme admitiria o próprio Bultmann –
que em todos os sentidos ele deve estar separado dos evangelistas por barreiras
muito mais formidáveis – tanto espirituais quanto intelectuais – como nunca
poderiam ser interpostas entre meus revisores e mim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário